Uma fé sem medo
La Stampa, 1 Maio 2011
de ENZO BIANCHI
A herança daquele que sempre confessou a sua fé, como o fez João Paulo II, exige que aceitemos, sem medos, o desafio sempre renovado de sermos testemunhas; através da unidade dos discípulos de Cristo, a mensagem de amor do Cristianismo, pede-nos que respondamos hoje, àquele convite feito da varanda da Basílica de S.Pedro, num italiano ainda inseguro: “Permitai a Cristo de falar ao Homem. Porque Deus sabe o que vai no seu coração!”.
La Stampa, 1 maggio 2011
“Nolite timere vos!, Não tenhais medo!”. É o anúncio dos anjos às mulheres que se dirigem ao sepulcro na manhã de Páscoa, o convite que precede a "boa notícia" de que o Senhor tinha ressuscitado. E “não tenhais medo!” é a exortação com que o Papa João Paulo II abriu o seu pontificado naquela tarde de 18 de Outubro de 1978. Não é um convite genérico para ter coragem, mas antes o enraizar do comportamento do cristão no mundo numa fé forte na ressurreição, o alicerce do "abri as portas a Cristo" que constituiu desde logo um leit motiv do ministério petrino exercido pelo Papa Polaco que hoje será proclamado beato.
Cristão, padre, bispo e Papa animado de uma fé sólida e confessada, de franqueza e de orgulho ao professar o credo, Karol Woytjla era conduzido por esta fé na ressurreição que o levava a todos, a não ter medo de encontrar também aqueles que lhe podiam se hostis ou que possuiam outras intenções: forte na sua fé, o encontro e o diálogo asseguravam-lhe êxito e levavam-no a ser audaz. Por isso queria ir até à China, onde os cristãos continuam a ser presseguidos, por isso não temeu o diálogo com as outras religiões, por isso encorajou a abertura ecuménica da Igreja católica: do encontro, do diálogo em que não esquece a justiça e os direitos das vítimas sabia que podiam apenas nascer bons frutos. Sim, aquela fé em nome da qual continuava a pedir aos cristãos que não tivessem medo, não lhe permitia a ele, antes de a qualquer outro, que o tivesse. Diante da secularização que alastrava no mundo ocidental, diante do desafio com o Islão, no face a face com os poderes deste mundo capazes de decidir guerras preventivas e de esquecer os pobres da terra, João Paulo II não teve medo e exortou todos a que não o tivessem também.
Homem de intensa vida interior, cristão impregnado de oração, estava convicto que a oração, longe de ser uma evasão, é uma componente da história, uma força capaz de tornar possível o impossível. Ao vê-lo recolhido em oração para logo de seguida se deixar emergir nas multidões, no contacto com os mais pequenos ou no encontro com os grandes do planeta tinha-se a impressão de que daquele comportamento de constante oração ele saísse para logo de seguida reentrar, como num espaço de maior intimidade com Deus e com a sua palavra, numa dimensão de autêntica contemplação cristã que o ajudava a discernir as realidades com o próprio olhar de Deus. Sim, a eloquência da sua fé fluia daquele habitare secum, daquele saber-se recolher em oração para reler o vivido e para recompor os múltiplos eventos da vida numa harmonia sinfónica.
E são estes dois elementos – a intensidade da oração e a fé destemida, segura de poder "mover montanhas" – que encontrei no seu olhar e nas suas palavras da última vez que tive oportunidade de o encontrar. Foi em Agosto de 2004 e o Papa, já muito debilitado pela sua doença, recebia a delegação que tinha nomeado para, em seu nome, restituir ao Patriarca Alessio II de Moscovo, o ícone da Virgem de Kazan. Ele quis dar uma dimensão de oração ao gesto de entrega daquela imagem sagrada que nos confiava, substraindo-o da habitual prática diplomática de uma oferta preciosa, para lhe atribuir uma dimensão de fé, de esperança e de caridade. Naquele gesto era latente e ardente o desejo de fraternidade para com a Igreja Ortodoxa, a consciência de não ser realizável a sua desejada viagem a Moscovo, a convicção que a reciprocidade não é virtude cristã, mas, sobretudo, a vontade de criar espaço, uma vez mais, à oração, para que fosse o Senhor a levar a bom termo aquilo que nós homens, e o próprio Papa, podemos apenas iniciar.
“Grazie!” – disse-lhe simplesmente quando me abeirei dele durante aquela liturgia – "Obrigado Santidade, por este gesto evangélico e gratuito”. E o Papa, com determinação, disse-me: “Coragem, continue em frente no caminho do Ecumenismo!”.
A herança daquele que sempre confessou a sua fé, como o fez João Paulo II, exige que aceitemos, sem medos, o desafio sempre renovado de sermos testemunhas; através da unidade dos discípulos de Cristo, a mensagem de amor do Cristianismo, pede-nos que respondamos hoje àquele convite feito da varanda da Basílica de São Pedro, num italiano ainda inseguro: “Permitai a Cristo de falar ao Homem. Porque Deus sabe o que está no seu coração!”.
Enzo Bianchi
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