Jejum
Le parole della spiritualità
de ENZO BIANCHI
O cristão recorda a raíz antropológica e a especificidade cristã do jejum. O jejum está profundamente relacionado com a fé porque questiona: "Cristão, de que vives?''
Assistimos hoje, no Ocidente, a uma eliminação de facto da prática eclesial do jejum: uma prática vivida desde Israel, reproosta por Cristo, acolhida pela grande tradição eclesial, está cada vez menos presente, não é mais pedida... Contudo, para encontrarmos a própria verdade, aquela verdade humana que com a graça se torna verdade cristã, ocorre pensar, rezar, partilhar os bens, (re)conhecer o mal que habita em nós, mas também jejuar -qual disciplina da oralidade. O comer pertence ao registo do desejo, ultrapassa a simples função nutritiva para se revestir de importantes conotações afectivas e simbólicas. O homem, enquanto homem, não se nutre apenas de alimento, mas também de palavras e gestos, de relações, de amor, isto é, de tudo aquilo que dá sentido à vida nutrida e mantida pelo alimento. O comer insere-se numa dimensão de convívio e de relação. A oralidade está ligada à dimensão do "comer", do "falar", do "beijar", à dimensão biológica, comunicativa e afectiva da existência humana e por isso remete-nos para a totalidade da pessoa que "vive" destas dimensões. O jejum tem, assim, a função primordial, de nos ajudar a perceber qual é a nossa fome, de que vivemos, de que nos nutrimos e de ordenar os nossos apetites em função do que é realmente central.
Todavia, seria profundamente enganador pensar que o jejum - na variedade de formas e graus que a tradição cristã desenvolveu: jejum total, abstinência de carnes, assunção de alimentos exclusivamente vegetais ou apenas de pão e água -, seja substituível por qualquer outra forma de mortificação ou privação. O comer remete para o primeiro modo relacional da criança com o mundo exterior: a criança nao se nutre apenas de leite materno, mas inicialmente não reconhece distinção entre mãe e alimento; nutre-se da presença que o envolve; ele "come", pressente vozes, cheiros, formas, feições e assim, lentamente, edifica a sua personalidade relacional e afectiva. Isto significa que o simbolismo do jejum é absolutamente peculiar e que não encontra "equivalente" noutras formas de ascese que, revestindo outras valências simbólicas, não podem desenvolver a sua função. Os exercícios ascéticos não são pemeáveis a trocas! Com o jejum aprendemos a conhecer e a moderar muitos dos nossos apetites através da moderação do apetite fundamental e vita que é a fome. E aprendemos a disciplinar as nossas relações com os outros, com a relidade externa e com Deus -relações sempre tentadas pela voragem. O jejum é ascese da necessidade e educação do desejo.
Só um cristianismo insípido e tonto, entendido como moral social, pode achar que o jejum é irrelevante e pensar que a privação de qualquer coisa supérfula (não vital, como o comer) o possa substituir. Esta é uma tendência docética que torna "aparente" a criatura humana e que esquece quer a espessura do corpo quer o facto de este ser templo do Espírito Santo. Na verdade, o jejum é a forma do crente confessar a sua fé no Senhor com o seu corpo, é antídoto à redução intelectual da vida espiritual ou à sua confusão com o psicológico. É certo que há o risco de fazer do jejum uma obra meritória, uma performance ascética, mas a tradição cristã recorda que ele deve ser feito com descrição e com humildade, com um objectivo muito preciso: a justiça, a partilha, o amor por Deus e pelo próximo (Isaías 58,4-7; Mateus 6,1-18).
Eis porque atradição cristã é muito equilibrada e sábia sobre esta matéria: "o jejum é inútil e mesmo prejudicial para quem não conhece o carácter e as condições" (João Crisóstomo); "É melhor comer carne e beber vinho que devorar com maldicência os próprios irmãos"(Abba Iperechio); "Se praticais a ascese de um jejum não vos orgulheis. Se por isso ficais cheios de soberba mais vale que comeis carne, porque é melhor comer carne que um inchar-se ou vangloriar-se." (Isidoro il Presbitero).
Sim, nós somos aquilo que comemos e o crente não vive apenas de pão mas, sobretudo, da Palavra e do Pão Eucarístico, da Vida Divina: uma praxis pessoal e eclesial de jejum faz parte do ser discípulo de Jesus, que também jejuou (Mateus 4,2); é obediência ao Senhor que pediu aos seus discípulos a oração e o jejum (Mateus 6,16-18; 9,15; Marcos 9,29; cf. Actos 13,2-3; 14,23); é confissão de fé feita com corpo, é pedagogia que leva a totalidade da pessoa à adoração de Deus (note-se que a etimologia de "adorar''(adorare) contém uma remissão à boca, os-oris, à dimensão da oralidade). Num tempo em que o consumismo entorpece a capacidade de discernimento entre as falsas e as verdadeiras necessidades, em que o mesmo jejum e as terapias dietéticas se tornaram objecto de business, em que as práticas orientais de ascese repropôem o jejum e a Quaresma é apressadamente lida como o equivalente do Ramadão muçulmano, o cristão deve recordar a raíz antropológica e a especificidade cristã do jejum. O jejum está profundamente relacionado com a fé porque questiona: "Cristão, de que vives?''