Memoria Dei
Le parole della spiritualità
de Enzo Bianchi
esta memória torna-se presença interior, oração, portanto; isto é, vida diante de Deus e na consciência de tal presença
Dois textos bíblicos pedem ao cristão que reze "sempre" e "sem interrupções". No evangelho de Lucas, Jesús anuncia uma parábola sobre a "...obrigação de orar sempre, sem desfalecer;" (Lucas 18,1) e Paulo ordena: "Orai sem cessar." (1 Ts 5,17). Como é possível? E como é possível conciliar esta ordem com outra que pede que trabalhemos (2 Ts 3,12) e com o exemplo do própro Paulo que afirma trabalhar "noite e dia" (2 Ts 3,8)? E como é possível rezar enquanto se dorme? Estas questões atravessaram o Cristianismo antigo, sobretudo o monaquismo, recebendo diversas tentativas de resposta. Das radicais e extremistas dos "messalianos'' (ou "euquitos'', "aqueles que rezam'') que, recusando absolutamente o trabalho, pretendiam dedicar-se unicamente à oração, àquelas, dos também extremistas"acemetas'' ("aqueles que não dormem''), que procuravam reduzir o mais possível o tempo de sono para dedicarem-se exclusivamente à oração. Outras respostas, mais extrínsecas e típicas do monaquismo cenobítico, procuraram multiplicar as horas de oração litúrgica e de assegurar, mediante turnos e a rotatividade dos monges, uma contínua oração litúrgica, um laus perennis. Outras respostas preferiram a via da interioridade, da oração ritmada pelo bater do coração, pelo respirar, pela repetição de uma invocação dirigida a Deus, para atingir a dita "oração monológica'', que repete à exaustão uma só palavra, por ex. o nome de Jesús.
Fruto da concentração do Espírito do Homem no nome do seu Senhor, desta atenção que esvazia o coração de qualquer outro pensamento e o faz habitar exclusivamente pelo pensamento de Deus, temos a mnéme theoû, a memoria Dei, a "lembrança de Deus''. Expressa sobretudo pelo ensino de Pseudo-Macario, a recordação de Deus é um comportamento espiritual profundo, de unificação do coração diante da interiorizada presença de Deus. É a lembrança, no sentido de guardar no coração, na mente e no íntimo da pessoa, a presença de Deus, para que seja unificada e integrada na vida interior, também a vida exterior do homem. É a lembrança à luz da qual se vive e se (re) compreende o presente, julgando-o na fé. A memoria Dei torna-se assim a matriz do discernimento que forja a sabedoria espiritual e torna o homem capaz de viver cada acção e cada palavra à luz de um terceiro que o crente faz reinar em cada relação: Deus. O homem espiritual nasce desta vivificante memória. É memória associada ao amor, à caridade, ao zelo, ao ardor, à compunção, no confronto permanente com Deus. Disse Pseudo-Macário: "O cristão deve sempre guardar a lembrança de Deus, porque não deve amar a Deus apenas na Igreja, mas também caminhando, falando, comendo." Esta memória torna-se presença interior, logo oração, isto é, vida diante de Deus e na consciência de tal presença. O crente torna-se assim "casa do Senhor", como afirma o apóstolo Paulo. É óbvio portanto que tal memória não seja simplesmente um movimento psicológico mas acção do Espírito Santo.
O quarto Evangelho, para o qual o Espírito tem a função de "ensinar e recordar" (Jo 14,23), afirma que o Espírito ensinará e recordará "tudo" aquilo que Jesús disse e fez. O Espírito aparece sempre como memória da totalidade. Esta totalidade não é dada pela soma de gestos cumpridos e palavras pronunciadas e fixadas na Escritura, mas pela própria presença de Jesús Cristo. É memória das palavras e do silêncio de Jesús, do dito e do não-dito, do que se cumpriu e do que não se cumpriu, do já e do ainda-não, logo, também, do que ainda não aconteceu. Obra do Espírito, esta memória, é também profecia. Ela conduz àquela consonância profunda com Cristo, com aquilo que está para lá do seu falar e do seu agir, daquilo que infunde no crente a capacidade de obedecer creativamente ao Evangelho, guiado pelo Espírito que é habitado por Cristo. Esta memoria Dei oculta em si uma atitude de reconhecimento e de gratidão, de fidelidade e de empenho, de dedicação e de esperança. É memória que unifica o passado, dá luz e sentido ao presente e abre a esperança no futuro. Compreendemos facilmente porque Gregorio, o Sinaita (séc. XIV) tenha afirmado que o mandamento "Recorda-te do Senhor teu Deus em todos os tempos'' seja o mais importante de todos. Depende dele o cumprimento de todos os outros.
extraído de:
ENZO BIANCHI, Le parole della spiritualità,
Rizzoli, 1999 pp.83-86