A lectio divina na tradição da espiritualidade cristã
Quem diz leitura, diz livro. Quem diz livro, diz - para o crente - Bíblia. Quem diz Bíblia, diz Palavra de Deus. Quem diz Palavra de Deus, anuncia o Deus vivo, o único que fala, e a fé neste mesmo Deus vivo. Quem diz fé no Deus vivo, diz o início da amizade entre Deus e o homem e isso é o cristianismo por inteiro: é fé na Palavra de Deus feita carne. Para desenvolver essa mesma fé, o cristianismo introduz a lectio divina como elemento essencial da sua espiritualidade. Pois se é verdade que a fé nasce, em primeiro lugar, não de um livro lido mas de uma palavra escutada, não de uma lectio mas de uma praedicatio (Rm 10,17), não de uma palavra escrita mas de uma palavra pronunciada com a força de um acontecimento sempre novo, também é verdade que o povo de Deus fixou por escrito a Palavra ardente e reuniu em livros os oráculos proféticos e que o Livro das Escrituras conserva na Igreja - como o vaso conservava na Arca o maná incorruptível - a Palavra de Deus incorruptível e sempre viva.
É necessário saber usar este livro para a própria salvação e não para a própria destruição, para encontrar o caminho para Deus e não para perder-se; mas que é necessário servir-se dele, que é necessário abri-lo e esmiuçá-lo é um facto incontestável para o crente.
Ou não é verdade que o crente experimenta de modo espontâneo no ardor da sua fé a estranha atracção que exerce este livro no qual se pode encontrar o Senhor que um dia se entrometeu no caminho da nossa vida e a quem nos entregamos totalmente?
Orígenes dizia: "O que é a conversão? Se voltarmos as costas a todas as coisas deste mundo e através do estudo, das nossas acções, do nosso espírito, do nosso esforço, nos consagrarmos à Palavra de Deus, se meditarmos a sua Lei dia e noite, se - esquecendo-nos de tudo - estivermos disponíveis para Deus e levarmos a sério os seus testemunhos... é isto que significa a conversão ao Senhor (In Ex., hom. 12).
A espiritualidade cristã não é senão a espiritualidade do baptismo vivida na lógica pascal que constitui o seu núcleo central. O movimento de conversão que nos afasta do pecado, da mentira, da futilidade, faz-nos necessariamente aderir ao Deus santo e verdadeiro, e é particularmente na sua Palavra que nós O encontramos. Converter-se, voltar-se para o Senhor significa portanto namorar com a sua palavra: «Quando as tuas palavras vinham ao meu encontro, eu as devorava; a tua palavra era a minha delícia e a alegria do meu coração » (Jer 15,16).
A abertura do Salmo 1 surge como o ideal místico de todo crente e é um motivo constante na pena de cada escritor cristão: «Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios nem se detém na via dos pecadores, mas antes se compraz na lei do Senhor e nela medita dia e noite!».
A nostalgia do crente, a “saudade” da hora em que conheceu Deus e ouviu a sua Palavra consistirá, como escreveu Orígenes, «em esquecer tudo e estar disponível para Deus» (omissis omnibus, Deo vacare); o profeta Oseias exprime esta nostalgia de Israel em termos inesquecíveis: «Eu a vou seduzir, a levarei ao deserto e lhe falarei ao coração» (Os 2,16). A fé tende secretamente, por si mesma, em direcção a esta escuta do Verbo que é a Palavra substancial e beatificante do Deus vivo.
É claro que este movimento espontâneo da fé deve ser conjugado com a condição terrena que o obriga a um longo desvio e a uma infinita paciência. A maior parte dos cristãos em todo o mundo, abrem o Livro apenas em momentos muito raros, quando por um instante podem esquecer as preocupações da vida terrena e, então, omissis omnibus, Deo vacare. E quando é que isto acontece se não cada semana naquele que é por excelência o dia do Senhor?
Vacare Deo: dedicar tempo a Deus, consagrar tempo a Deus é exactamente a função e o significado do Domingo no ritmo da vida cristã. Seis dias na semana são dedicados ao trabalho humano e às palavras humanas; o sétimo dia é dedicado ao Senhor e ao encontro com Ele, tanto na sua Palavra como na Eucaristia. Quando, segundo são Jerónimo (Ep. 22,35), a Regra de Pacómio prescrevia aos monges «dedicar-se, cada Domingo, exclusivamente à oração e à leitura», não fazia senão aplicar em modo mais intenso à vida monástica aquilo que deve ser um ideal de cada cristão.
Mais precisamente: o que é aquilo define e caracteriza os primeiros monges? O facto que para eles cada dia é Domingo! Não no sentido da abstenção do trabalho – neste aspecto os monges obedecem à lei universal do trabalho semanal durante seis dias – mas no sentido que o Domingo é sobretudo o tempo consagrado à leitura da Palavra de Deus. Os monges são aqueles que não aguentam sem alimentar-se continuamente desta Palavra, aqueles que procuram viver à risca, já aqui, aquilo que a sua conversão misticamente significa: o esquecimento das coisas do mundo para abraçar apenas a Palavra de Deus. A lectio divina torna-se deste modo, desde os primórdios, a parte mais importante da organização monástica. Tomemos alguns testemunhos da obra de Denys Gorce, La lectio divina des origines du cénobitisme à Saint Benoit et Cassiodore I, Paris 1925.
Santo Antão, o pai do monaquismo, pedia aos discípulos que vinham formar-se sob a sua orientação "orar com assiduidade, recitar os salmos antes de dormir e depois de acordar, ruminar no seu espírito os mandamentos da Escritura e conservar na memória os exemplos dos santos de modo que, mantendo a alma estimulada pelos preceitos divinos, pudessem imitar o seu zelo". (idem p.66)
A Regra de São Pacómio:
"A meditação das Escrituras... é a seiva da grande árvore monástica, a pedra angular do edifício pacomiano e o alicerce da sua solidez. É o meio ascético por excelência para não perder de vista a Cristo nem sequer um instante durante o dia, e para conservar a sua presença durante a noite. O cenobita pacomiano é a realização da figura do justo, «que encontra a sua alegria na lei do Senhor e nela medita dia e noite»" (idem p.79)
Note-se como a Regra de São Pacómio subordina à oração e à leitura qualquer outro exercício físico de ascese:
"É segundo o cânone da Igreja que jejuemos só durante dois dias, para ter forças e não faltar ao que nos é ordenado, isto é, a oração contínua, as vigílias, a meditação da lei de Deus"
(idem p.71-72).
São Jerónimo, num jeito muito pessoal, mas sob o exemplo destes Anciãos, retomou o ideal de uma vida totalmente centrada na Palavra de Deus: o seu ensino em Belém, os seus trabalhos exegéticos não tiveram outro objectivo senão penetrar mais fundo na verdade desta Palavra. É este o seu desejo: «Que o sonho te sorprenda com os livros na mão e, se a tua cabeça se abaixar pelo cansaço, caia sobre a página santa» (idem pg.55).
Mas não foram só os monges que se consagraram à lectio divina: bispos como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório Magno (papa) e muitos outros não tinham uma espiritualidade diferente.
O célebre monge Cassiano, no séc. IV, nos transmite a alegria que irradia uma tal espiritualidade:
"Recolhidas com delicadeza (as palavras sagradas), colocadas com atenção e etiquetadas nos compartimentos da alma, munidas do sigilo do silêncio, acontecerá com elas como com os vinhos de suave perfume que alegram o coração do homem. Envelhecidas por longas reflexões e estagiadas na lentidão da paciência, as servireis a partir do recipiente do vosso coração em jactos de flagrante bálsamo; como um xafariz que jorra sem parar, fluirão das veias da experiência e dos canais que expandem virtude; brotarão em rios inexauríveis do vosso coração como das profundidades da terra." (Jean Cassien, Conférences H, ed. E.Pichery, SC 54, Paris 1958, p. 201)
Finalmente a Regra de São Bento introduz a lectio divina na estructura monástica e, assim, na espiritualidade de todo o Ocidente cristão: leitura comunitária no ofício, em particular nas completas e no refeitório e leitura pessoal aprox. três horas por dia.
(Texto original em «La lectio divina nella chiesa», in Pregare la Bibbia nella vita religiosa, Bose 1983 p. 7-10 oggi disponibile nella collana fascicoli Qiqajon n° 51 pg.1-5)